MAMII Fusako. Tinha 23 anos na época. Estava em sua casa na cidade de Uchikoshi-cho a 1.7 quilômetro do centro da explosão. Foi no momento em que ía entrar em casa depois de ter acabado de estender as roupas. Após uma forte luz, fui jogada no chão do quintal e fiquei na parte de baixo de minha casa. Eu estava correndo com meu filho que estava cheio de vidros pelo seu corpo, quando uma criança com um olho para fora, pegou meu tornozelo. Sem querer acabei chutando-o, e isso me doe muito quando me lembro dessa sensação.
Terminei o ensino fundamental e o ensino médio em uma escola para meninas em Kure. Vim para Hiroshima quando me casei em abril de 1942. Morei lá até me tornar vítima da bomba atômica. Eu mencionei Uchikoshi-cho na cidade de Hiroshima, mas fica bem ao lado da estação de Yokogawa. Eu tinha 23 e meu marido 30 anos. Nós já trabalhávamos. Meu filho mais velho tinha 2 anos e eu estava grávida. Nós éramos 4 pessoas. No dia, quem estava em casa era somente eu e meu filho. Como meu filho tinha apenas 2 anos, brincava muito com as crianças da vizinhança. Quando os ajudantes dos soldados e os soldados passavam, davam balas e caramelos para as crianças. Eu me lembro do meu filho indo pedir mais para eles: "Me dá de novo". As crianças daquela época morreram sem conhecer nem coisas doces nem coisas gostosas.
Dia 6 de Agosto
Foi exatamente quando eu estava estendendo a roupa, que acho que ouvi o baruho da explosão. Meu jardim era pequeno, mas mesmo de lá eu pude ver ele voando lá em cima. O barulho da explosão se escuta bem de leve, mas o rastro de fumaça do avião se vê bem claro. Nesse dia também fez um leve barulho, porém não havia o rastro de fumaça do avião. Então pensei que era coisa da minha cabeça e olhei para meu filho que estava brincando sozinho ao lado na varanda. Antigamente as casas tinham essa varanda chamada "engawa". Então vi que meu filho estava brincando sozinho e acabei de estander a roupa. Quando fui levantar meu pé para pisar na varanda, entrei olhando para dentro de casa. Foi nessa hora que vi uma luz, até hoje posso lembrar dessa imagem. Aquela luz não era nem amarela nem branca. Sei que não posso falar assim, porém é como se virasse um espelho para o sol brilhando. Uma luz como essa que entrou em meus olhos.
Nós chamamos a bomba atômica de Hiroshima de "Pikadon", que significa luz e barulho. Da luz eu me lembro muito bem, mas o barulho já não escuto mais. Na divisão da minha casa com a da minha vizinha havia uma parede. Porém não era parede de concreto, como hoje em dia, era uma parede de antigamente e essa parede veio inteira para cima de mim. Então fui jogada junto com essa parede no jardim. O telhado do segundo andar caiu em cima de mim. Se tivesse caído diretamente em mim, tenho certeza que teria morrido na hora. As paredes de antigamente eram feitas de terra. Essa parede feita de terra caiu quase inteiramente em cima de mim e fui jogada junto com ela no jardim. Depois de algum tempo, não sei exatamente quanto, a minha vizinha, que não encontrava seu filho, veio até a minha casa. Minha vizinha tinha a mesma idade que eu e éramos muito amigas. Não sei ao certo quanto tempo fiquei com o telhado em cima de mim, até que escutei a voz desse casal de vizinhos. Eles falavam: "A Mamii já está morta. Mas, mesmo morta vamos tirá-la daí." Escutando isso, eu tentava falar com todas as minhas forças: "Estou viva! Estou viva!" Não sei dizer qual era minha situação,porém como escutei esse casal de vizinhos falando: "A Mamii já está morta. Mas, mesmo morta vamos tirá-la daí." Para mim, eu estava dizendo: "Estou viva! Estou viva!", mas por fora, eu não escutava mais nada.
Esse casal também ficou, assim como eu, embaixo das coisas que caíram dentro de casa. Mas, como foi dentro de casa, eles conseguiram ajudar um ao outro e sair debaixo das coisas. Então vieram a minha procura. A parte direita de cima do meu corpo estava enterrada e meus pés e a parte esquerda estavam para fora. Como estava debaixo do telhado, acharam que eu já estava morta. Ela já deve estar morta, mas mesmo assim vamos tirá-la daqui debaixo. Esse foi o pensamento desse casal de vizinhos. Quando me tiraram debaixo do telhado e me colocaram de lado, eu abri meus olhos. Quando abri os olhos o casal falou: "Está viva! Ela está viva!" Quando eu fiz isso, vi os rostos cheios de sangue do casal de vizinhos na minha frente. Não sabia o que era aquilo, se era ou não bombardeamento aéreo. Dentro da minha cabeça, tudo estava confuso. Tinha um casal cheio de sangue, e eu não sabia que tinha acabado de ser resgatada, naquele momento. Quando esse casal coberto de sangue olhou para o meu rosto e os dois gritaram: "Está viva! Está viva!", eu me lembro de ter gritado: "Meu filho! Onde está meu filho?"
Então me lembro quando falei: "Meu filho! Meu filho!" Minha amiga falou com meu filho no colo: "Seu filho está aqui." Depois, quando estávamos fugindo, me falaram que meu filho tinha sido jogado para o jardim da casa dos fundos. Quando me falaram "Seu filho está aqui.", eu olhei para ele. Ele estava usando uma camiseta quando foi jogado para o jardim da casa dos fundos e sua camiseta estava toda rasgada porque tinha sido jogado junto com os vidros da varanda. Sua cabeça, seu rosto e todo o corpo estavam cobertos de vidro. Eu achei que seu corpo estava cheio de pequenos cacos de vidro. Não saía sangue, mas eu conseguia ver o brilho dos cacos de vidro por todo seu corpo. Achei que como seu corpo estava cheio de cacos de vidro, que ele acabaria morrendo. Falaram que antes disso ouviram uma voz de criança chorando. Quando estavam tentando me tirar de baixo do telhado, ouviram uma criança chorando e quando olharam, viram meu filho embaixo de uma árvore de figo, daí minha amiga foi buscá-lo. Enquanto isso, seu marido me tirava de baixo do telhado.
Então foi por isso que minha amiga estava com meu filho no colo. Quando eu vi meu filho cheio de cacos de vidros pelo seu corpo, pensei: "Esse menino vai morrer." Minha mão direita não se movia, porém a esquerda sim. Então com a mão esquerda peguei meu filho de volta. Então meu vizinho gritou bem alto: "Caiu uma bomba, a partir de agora vão jogar bombas incendiárias." Ouvíamos falar que várias cidades estavam sendo bombardeadas. "Estão bombardeando esta cidade; esta cidade não, o meu jardim foi bombardeado." "Agora vão jogar bombas incendiárias, não conseguiremos mais fugir." Meu vizinho falou: "Não importa, vamos fugir daqui juntos." Como já falei antes, a casa da frente era de um soldado. Eles tinham uma filha, que na primavera, tinha acabado de se formar em uma escola para meninas. Ela estava sentada em cima de um portão de pedra que tinha caído. Nem eu, nem meus vizinhos e nem essa filha do vizinho da frente estávamos queimados. Todos se machucaram dentro de casa, mas conseguiram fugir. Essa filha dos vizinhos da frente também estava coberta de sangue. Quando o meu vizinho falou em voz alta: "Vamos fugir daqui. Agora eles vão jogar bombas incendiárias, não conseguiremos mais fugir. Vamos fugir!" Essa filha dos vizinhos da frente se levantou bem devagar, e falou algo que eu não consegui ouvir. Mas, essa menina foi entrando no abrigo antiaéreo de sua casa.
Foi então que notei que minha roupa estava toda rasgada e que eu estava completamente nua.Então, essa menina entrou no abrigo antiaéreo de sua casa. Foi até o abrigo antiaéreo, pegou sua roupa que estava lá e me deu para vestir, eu que estava completamente nua. Minha amiga e essa menina que morava em frente me vestiram, era uma roupa de inverno de cor preta. Então eu falei: "Não se preocupe comigo. Leve meu filho, ele vai acabar morrendo. Fuja com ele daqui." Eu me lembro de ter tirado a mão das duas de cima de mim.
Rumo ao rio Mitaki
Meu vizinho falou: "Vamos para lá, eu vou tirar os vidros do corpo dele." "Temos que tirar logo os vidros do corpo do menino. Não sabemos se vão jogar algo mais." Não sei dizer quanto tempo se passou, pois estava sem a noção do tempo. Então eu também juntei-me a eles e fugi rumo ao rio Mitaki. No meio do caminho, o casal de vizinhos e a menina que me vestiu esperavam por mim. E eu nem tinha percebido que eles não estavam mais comigo. Na hora de fugir, estavam todos em fila, tinham pessoas que estavam arrastando a pele de suas coxas. É uma comparação meio estranha mas parecia aquelas roupas dos samurais de antigamente. Eles arrastavam a pele caída das suas coxas. As mãos estavam penduradas dessa forma, então eu nem imaginava que as suas peles estavam tão caídas assim. Eu estava fugindo com pessoas em várias situações. Quando uma pessoa caía, as pessoas que estavam em volta começavam a cair junto. Eu estava com meu filho no colo andando por cima do corpo das pessoas que estavam caídas no chão. Eu me lembro até hoje da sensação de pisar quase escorregando nas peles queimadas das pessoas que estavam caídas no chão.
Foi então que senti alguém pegando no meu tornozelo. Fui pisando para a frente e quando vi era uma criança. Não sei se tinha 3 ou 4 , 4 ou 5 anos, mas era uma criança. Não sei se era menino ou menina. Quando olhei seu rosto parecia uma bola de futebol, todo inchado e marrom. Um dos seus olhos estava para fora e estava bem no meio de sua testa. Senti como se esse olho estivesse olhando de baixo a cima em minha direção. Cheguei até a pensar que um monstrinho de um olho só tinha me pegado. Eu, sem querer, com o meu pé esquerdo... foi inconsciente. Foi muito inconscientemente que acabei... chutando esse menino pensando que era um monstrinho de um olho só. Talvez porque essa criança não tivesse pego o meu pé com tanta força, eu a vi caindo... então, eu pensei que esse monstrinho de um olho só fosse me pegar novamente... Sua mão tinha me largado, porém pensei que fosse me pegar novamente. Para mim, eu estava correndo, mas como estava toda machucada sei que não estava bem. Como achei que estava vindo atrás de mim, eu me concentrei em fugir. Meu filho estava com os olhos fechados, pois estava com seu rosto cheio de vidro. Eu coloquei as mãos para trás e o abracei bem forte.
Então, começou a chover. Foi uma chuva tão forte que mal conseguia ficar em pé. Então eu sentei e coloquei meu filho embaixo de mim como que para protegê-lo da chuva. Como eu não conseguia andar, fiquei assim, protegendo-o. Eu nem tinha percebido que essa chuva era preta e que parecia um óleo viscoso. Eu só me lembro que era uma chuva muito intensa e que quando entrou em contato com minhas feridas, doeu muito. Mas até agora não consigo sentir que fosse uma chuva forte. Essa chuva foi passando aos poucos. Como foi uma chuva muito forte, os cacos de vidro que estavam espalhados pelo corpo do meu filho foram saindo. Nessa hora, só consegui ter um pensamento: "Ele se salvou." As pessoas falam que era uma chuva preta e oleosa. Após terem se passado 61 anos, eu ainda acho que foi uma chuva que salvou meu filho. Graças a essa chuva, os cacos de vidro do corpo de meu filho saíram.
Quando desci ao rio... era um rio agitado. Acho que tinha umas correntezas de uns 20 ou 30 cm de largura por uns 20 ou 30 cm de profundidade. Várias coisas eram levadas pelo rio. As pessoas que tinham chegado antes ao rio colocavam seus rostos dentro dele e assim mesmo iam morrendo. Como, felizmente, eu tinha minhas pernas ia desviando dos cadáveres. Dentro desse rio, sentei em uma parte na qual a água chegava até as minhas coxas e com as minhas próprias mãos dei de beber ao meu filho e tomei água também. Muitas pessoas não conseguiam chegar perto do rio, mesmo conseguindo vê-lo. Tanto adultos como crianças pediam: "Por favor, me dê água." Mas eu não tinha vontade de me importar com as pessoas. Então dei muita água para meu filho e eu também tomei muita água. Depois passei água no corpo de meu filho. Acho que as pessoas em nossa volta nos viam, mãe e filho, não somente eu. Pensando em retrospecto, acho que só viam mãe e filho. Imagino o quanto aquelas pessoas queriam beber aquela água... Eu escutava as pessoas dizendo: "Por favor, me dê água." Mas, sendo bem sincera, eu não tinha vontade de dar água para aquelas pessoas. Até amanhecer e clarear o dia, eu fiquei ali esperando por meu marido. Eu olhava as pessoas ao meu redor. Eu as olhava bem, essa imagem está bem forte em minha memória. Porém, não me movi daquele lugar até amanhecer o dia.
O que quero transmitir
As crianças de hoje em dia têm paz, têm muitas coisas materiais, são abençoadas com várias riquezas e comem coisas muito gostosas. Quando ouço as mães hoje em dia falando: "As crianças hoje em dia..." Eu penso que as crianças de hoje em dia... as crianças que foram mortas naquele dia,... aquelas crianças que gritavam pedindo: "Quero água! Quero água!"... Eu tenho certeza de que elas reencarnaram nas crianças de hoje em dia. Eu me sinto muito arrependida porque não consegui ajudar aquelas crianças. Não podemos envolver as criaças em guerras, as crianças não entendem o que é guerra. Para mim, o importante é somente isso. Temos que viver em paz... para não envolver as crianças (em guerra).
Tradução: Ariane Midori Nakandakari Iwasa.
Supervisão: Moisés Kirk de Carvalho Filho.
Coordenação: NET-GTAS (Network of Translators for the Globalization of the Testimonies of Atomic Bomb Survivors).
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